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De alma-palavra e coração-poema

  • Edis Henrique Peres
  • 24 de abr. de 2019
  • 5 min de leitura

Atualizado: 29 de abr. de 2020

“Ler é a oportunidade de forjar estrelas dentro de si e ser universo”, diz Edis Henrique, escritor aspirante

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Ele apoia-se sobre o armário da sala de faturamento. A funcionária confere os pedidos antes da impressão com os vendedores da força externa. “Você sabe, né?, que algumas profissões dá para enganar sem diploma”, diz ela e olha para a janela com o vidro em película azul que reflete o próprio rosto. “Como jornalismo, por exemplo.” Ele contrapõe, e mesmo seguro na resposta, quando pega o ônibus para ir embora, as mãos se inquietam e o rosto reflete certa insatisfação por aquele dia. Duas horas depois, quando chega em casa, abre a porta e vai direto para a geladeira. Pega a xícara e despeja leite condensado sobre biscoito de sal e nescau. Come a mistura impaciente, colher a colher, sem que o sabor agrade o paladar. No celular abre a guia de pesquisa e escreve: a importância da literatura para o mundo. Não encontra resposta alguma que o satisfaça. Lava a louça e o banheiro, toma banho de água quente e se deita.

Depois, levanta-se e pega seu livro no guarda-roupa. Folheia-o, sem que nada do que escrevera surtisse algum efeito. Anos atrás ouviu, dias após o lançamento de seu primeiro volume, comentários que carregava como farpas sob a pele. Se um dia fizer sucesso será quando estiver morto e enterrado a sete palmos no chão. Guardou o livro. Provavelmente vai morar em um casebre e passar fome. Encarava o teto, mas não conseguiu adormecer. Pegou o romance Perto do coração selvagem e o pôs sobre o colo. Vira calmamente as páginas, lendo trechos soltos aqui e ali, com o coração tensionado. O barulho no portão anuncia a chegada de sua esposa. Ela entra no apartamento e o beija, responde que o dia foi bom quando ele pergunta. É fácil à Jeyze notar os trejeitos do marido, respostas curtas e apressadas significam que algo o incomoda. Nesses momentos, não pergunta como foi o trabalho ou a faculdade, pois ele prefere não conversar sobre isso. “É como reviver as coisas ruins antes de tê-las superado”, disse para ela certa vez. O que o chateou seria revelado na manhã seguinte, quando estivesse mais calmo, ou quem sabe, dois ou três dias depois.

“Clarice me incomoda”, disse ele. A autora criava certa fascinação no aspirante e era sempre com alegria e tristeza que contava sobre as leituras da não-escritora. “Sabe, nunca serei como Clarice, o primeiro livro dela é melhor que o último que um dia eu vá escrever”. A esposa discordou, mas todo elogio que fizesse seria respondido da mesma forma: Você me ama, é por isso. Arrumaram-se para dormir. Ele não sentia sono, mas levava em conta certas manias. Olhava para o relógio e calculava quantas horas ainda poderia dormir até o dia seguinte, e dependendo do resultado, deitava-se e fechava os olhos, mesmo que estivesse alerta. Dormir tinha um aspecto racional para ele.

Na manhã seguinte, durante a ligação diária para a mãe enquanto caminha para a universidade, ela pede para ler de novo uma de suas crônicas, um texto que ganhara menção honrosa no concurso literário Icoense. Ele garante que vai enviar, mas não o faz, pois na releitura do texto, mesmo depois de ter ficado em quarto lugar do concurso, decidira que a crônica ainda não estava suficientemente boa. O primeiro romance que publicou, Sublime, também sofria as mesmas represálias do próprio autor. Não desejava que ninguém o lesse. Apaixonado por Clarice, sua inspiração nessas ocasiões era Lygia Fagundes Telles e repetia o que a autora um dia fizera: apagava textos de sua autoria e dizia: não passou de uma juvenilidade.


Impetuosidade sob a calmaria


Embora considerado calmo pelos amigos, os mais íntimos garantem que seu humor é inflexível. “Impaciente e estressado”, dirá sua irmã três anos e meio mais velha. Nos almoços de família as brincadeiras não se estendem com grande euforia até ele. “Não é que apela, mas não tem espírito esportivo”, conta o cunhado que o conhece há nove anos.

Na manhã de Páscoa sai com a esposa para a casa da mãe e lá joga queimada durante boa parte do tempo com sua irmã mais nova, Thayná, de dez anos de idade. O jogo continua até que ela canse. “O lado bom é que ele gosta de jogar queimada, o defeito é que dorme muito”, conta ela. Mas quando alguma desventura acontece na escola ou em casa, Thayná pede para que não entregue nada ao Henrique. Para o pai ela mesma conta, mas o irmão irá brigar.

Carinhoso com a família enfrenta dificuldades de socialização com outras pessoas. Em lugares públicos, pergunta a esposa se o momento requer abraços ou se pode ser apenas aperto de mão. O escritor sente-se desconfortável quando a atenção se volta para ele e não sabe lidar com ocasiões que requerem demasiado contato físico.


Amar palavras


Todos os dias, por mais improvável que fosse a leitura, Edis Henrique carrega um livro na mochila. O repetir da rotina o incomoda. Quando alguém pergunta se tem alguma novidade no dia, ele apenas responde: foi igual à ontem, semana passada, e será igual a amanhã, com pequenas mudanças pontuais.

O refúgio nos livros se entrelaça tanto em seus dias que ao encaixotar os pertences para se mudar ao apartamento em que mora com a esposa, os olhos marejaram ao arrumar, criteriosamente, os livros na caixa. As histórias lidas traziam saudosismos e desejava poder um dia ler todos os clássicos mundiais.

Apaixonado pela fantasia e ficção, o escritor admira títulos e trechos de obras que muitas vezes sequer leu. Toda vez que ouve o nome do livro de Hilda Hilst, tu não te moves de ti, algo intimo reverbera em seu ser.

Seu vício são os livros e o chocolate, de maneira tão intensa que é difícil mesurar qual o acomete com mais seriedade. Perde o controle quando o assunto é promoções de livros em sites de livrarias. Quando a consciência pesa demais, por causa dos gastos excessivos que não deveria acontecer, o autor diz para si mesmo que é um escritor, e que é assim mesmo, só irá escrever bem se ler bastante. Sua relação com os livros não é compreendida por todos: ele não enxerga possiblidade de viver se não estiver lendo. “É A magia de criar um mundo, de ter simbiose com as palavras. Apenas uma vida nunca será o bastante, é preciso que tenhamos infinitas para termos certeza que realmente aproveitamos tudo que podíamos fazer”, revela o autor, e já está com outro livro em mãos, dessa vez o próprio caderninho de couro que usa para escrever os rascunhos de suas histórias. E antes de perguntamos outra coisa, ele já está perdido em seu universo de papel e tinta.



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